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A mostrar mensagens de janeiro, 2020

CORPO

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A planta do pé, palmilha nua. Rugosidades. Irregularidades. Do solo. Das pedras. A pele, suave ou calejada. Nelas se raspa. Abandonando o seu próprio rasto. Vestígio dos seus passos. Abraçado pela terra. Sufocada nesta pegada. Que a pisa. Que a esburaca. Que a escava. A planta do pé, palmilha despida. Desperdícios. Lixos.   Do Homem. De si.

OCA

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No abismo da perfeição intangível, Da obsessão pela singularidade, Da personalização estandardizada do eu, Vivemos nós, egoístas e humanos. Roçam o nosso olhar, os males do mundo. Presos à sua própria realidade, Não transpõem a cúpula vítrea que nos protege.  Vivemos nós, impávidos e serenos. No vício da constante renovação, Na angústia do conhecido, Na ânsia irrespirável da novidade, Vivemos nós, sem passado e sem significado. No nosso espaço e no nosso tempo, Com os nossos objectos e os nossos preconceitos, No nosso núcleo de distrações, Vivemos nós, sozinhos e indiferentes. Numa realidade céptica, criamos as nossas relações, Agoniamos o juízo de pessoas anónimas, Ignoramos a respiração quente de quem suplica. Vivemos nós, numa ilusão de companhia. Possuídos pela frenética ocupação, Desviamo-nos do nosso sentido, Andamos em círculos de colisões. Vivemos nós, e não vivemos.

FRAGMENTOS

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Secou a raíz da criação. Já não é quente, o tronco. Foi cortado. Definhou-se a trepadeira. É agora de cor d'outono. No chão. Hoje é tudo mais frio, Mais luzidio, ainda que mais gasto. Inerte. Não respira nem bole. Nada mais brota, verdejante. Na rua.

PARTO

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São a distância e o isolamento Berço da criatividade Lúcida e espontênea. Escorrem os véus opacos. O irreflectido e o hábito. E se deixa florir a vida. Até hoje apagada Pelo sorriso que me priva Do encanto de tudo se ver. Na tristeza. Fotografia: Irene Trancossi https://instagram.com/irenetrancossi?igshid=4ce7465ryjk8
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Como que um rio. Seco. De margens mortas.

FRAGMENTOS

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Brotas verdejante e húmido, Do teu colo de telhas pintadas de pôr-do-sol. Desgastadas pelo choro dos céus, Lacrimoso, num sussurro, Desfeito num pranto. És uma onda terrena, Que faz do abrigo de outrem, o seu repouso. Ouves segredos que pelas paredes se entranham, E por elas escorrem, tocando o solo. E por elas se evaporam, tocando o teu sono. Aquece-te por entre os espaços do telhado, Pinta com a cor da natureza o tecto do homem. E guarda-o, secretamente. E por ele sussurra, lacrimoso. Desfaz-te num pranto.

CORPO

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Sendo os extremos igualmente ridículos, Exacerbando um qualquer equilíbrio. É a proximidade, longínqua. É o corpo, alma. Tão usado. Deteriorado pelos outros que por ele roçam. Dando-se. Sem regra. Numa degradação íntima. Que já não existe. Perversamente pública. Nua. Mais um corpo. Entre todos. Iguais e desbocados. Não é sentir, o prazer. Não é tempo apto à degustação. É uma necessidade ávida, Como num animal, que somos. Vivemos na sensualidade perdida. Tão carnal e tão substituível. Que qualquer corpo será os outros. Sorvido e servo da fatalidade fisiológica. Fotografia: Tatiana Delgado https://instagram.com/itatdelgadelha?igshid=nw4bk975y689

FRAGMENTOS

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Partiu-se o vento Em partes fugidas Agrestes e afiadas Rasgou-se a chuva Cansada de ser seca Sem silhueta delicada Queimou-se a brisa Em toda a pele da sua amada Partiram-se-lhe os ossos Já não mais pode ser recta Por se ter entregue Às mãos do poeta.

PARTO

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De um poema nasce a história Das bocas moribundas Dos dedos calejados Dos sorrisos já usados. De uma estrofe nasce o poema Dos murmúrios aos ouvidos Dos sussurros escondidos Dos olhares entrelaçados. De um verso nasce a estrofe Da tinta gasta já sequiosa Dos tempos idos de perdidos Das mãos dadas em si mesmas Deste suspiro nasceu a vida Desta angústia morreu o poeta.

OCO

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Sou mármore rachado Sou xisto arranhado. Não mais se vêem as cores do arco Agora triste e amordaçado. Não serve mais que chova Nem que escorra aos meus olhos Não mais me vejo no rio Agora seco pelo meu choro. Não sirvo mais para o mundo Nem que seja pintado Sou cor de granito Sou um sonho apagado.

FRAGMENTOS

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Olhei a flor morta, No passeio escurecido Dos passos e dos arrastos, Do cochear do tempo gasto Que mágoa não ser ainda Botão de flor colorida, Frágil e pequenina Que cabia na tua mão Pena ser tão vazia E por mim já esquecida, Na negrura do passeio, Sozinha e morta