CARTA I
Queria poder dizer que já me cresci.
Que já sou velha e que já sei de tudo,
Até já nem saber de nada.
Foi-se tudo num triz, que já me despedi.
Os pés estavam amarrados às mãos.
Num sopro frio.
Ainda tenho o frio.
No corpo. Na voz. De dentro para fora.
Naquilo que me sai da boca e que fica a meio. Do sonho.
P'lo caminho ficou-se a vontade de me ficar.
A porta ficou aberta de par sem par.
A minha tristeza a descoberto, enrubescida.
A corrente no ar degolou o suspiro, por último.
Não me tomei a sério.
Engoliram-me os sonhos e fiquei-lhes sem rasto.
Perdi-me em passos presos ao meu arrasto
e dexei-me ao relento da indiferença.
O meu corpo já era só carne por baixo do chão,
e só vos ouvia o andar, ao de leve, aqui e aqui.
Não sobrava nada por debaixo do orvalho.
A queda foi tão funda que me virei do avesso.
Parti-vos as memórias e deitei-me sobre os estilhaços.
Cobri-me de sangue de ninguém.
Não tinha cor. Nem calor. Nem sabor.
Nem eu.
Queria poder dizer que já me fui.
Que já sou anjo e que já sei sonhar.
Até já.
pH: Tatiana Delgado
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